sábado, 31 de dezembro de 2011

Feliz novo velho.

Todo começo exige explicações. Exceto esse, pois não vejo bem necessidade de serem ditas. Com toda palavra, esse personagem e sua peculiaridade não são bem atrativas. Principalmente, vocês que aí estão exigem tanta perfeição. Esse alguém nunca desejou ser melhor em nada. Jamais sentou na cadeira de uma sala e pensou em ser o primeiro e nem o melhor no que faz ou fará. E tampouco esse alguém já nem quer fazer nada.
Eis que trato de falar do velho Murilo- italiano que veio trabalhar nos engenhos de Vassouras há alguns anos atrás. Nada fez se não nada, nenhuma posse, apenas tralhas e uma casa vazia. Sua aparência digna de espantar quaisquer crianças do vilarejo, pois até certo momento, ele era o velho do saco para elas.
Foi quando o velho levanta da cama, sem muitos rituais de antes, sem ao menos olhar no espelho. Já dizia sinhô velho que espelho arranca alma, e, se é que já lhe tinha uma naquela altura. Lava o rosto numa bacia imunda e mede o espaço vazio. Um espaço que um dia foi ocupado por planos, por filhos inexistentes, por sua esposa jazida, por lembranças e teias de aranhas. Na cabeceira pega o álbum de fotografia, sabia que aquele era o último dia do ano e já não fazia diferença. Pouco sentia as vísceras do viver. Pegou a foto com uma mulher e uns rapaz abraçados perto da casa que agora estava. Já não sabia chorar. Amassou a foto e levantou. Pegou o chapéu perto da porta.
Chegou ao boteco do seu Afrânio com era de costume, o homem já sabia o gosto da freguesia. Todos já sabiam que Murilo era homem cabreiro, pouco falava- de modo, quase nunca se pronunciava. Pois a vida já arrancara tudo. Perderá até as palavras, de modo que havia gastado todas. Fica ali apreensivo numa mesa do canto degustando a vista turva rezando a língua de Deus, visto que tudo que é dito pelo criador tá no silêncio dos mistérios.
Murilo tomou três doses sem frescura- era disso que se alimentava. Já não queimava por dentro, esse era o remédio, nem sabia o que era médico. Termina e decide ir à praça.
No caminho, pega do bolso do paletó a fotografia amassada e pica de modo esculhambado transformando em pedaços, joga na primeira curva da rua. O velho vai até o jornaleiro sussurra de modo indicando o jornal e se senta sozinho num banco. Levou tempo, mas aprendeu que Homem é bicho que sempre morre só. Quando escutam três senhoras tricoteiras conversarem.
-Já disse a Fernandinha para ela por calcinha vermelha hoje à noite para vê se casa logo.
As velhas riram.
- Eu vou por um vestido amarelo, já apostei na mega da virada. Quero é muito dinheiro!
Tudo aquilo incomodava o velho. Levantou-se a sair dali. Achou outro lugar. Quando fitou uma notícia do aumento da aposentadoria. De modo que logo escutou uma roda de jovens.
- aí, ano que vem vou entrar na academia. Vou ficar gostoso.
- minha mãe todo ano diz que vai fazer dieta.
- Meu mano, vamo bebe todas lá em copa!
Murilo já estava ficando puto com aquilo e resolveu tomar algumas e ir para sua casa. Alegria demais era incomodo. Principalmente sem ter motivo. Caminhando, diante dele, vê uma figura de um menino maltrapilha com caixa de madeira na mão. As mãos estavam sujas de graça. O menino entoa:
-Tio, me ajuda aqui. Engraxa o sapato, poxa tio, é final de ano!
Sem muitos devaneios, Murilo logo sente piedade do moleque, balança a cabeça. O menino afobado põe a caixa no chão para o velho encaixar o pé. Ao vê o movimento das mãos do menino polindo o sapato já surrado, o velho bêbado podia notar alguma coisa diferente naquele jovem. Era parecido com ele quando mais novo. Ou seria seu filho? Achou tudo aquilo piada de mau gosto causada pelas alucinações da cachaça. Mas de qualquer modo associou sua possível simpatia pelo jovem pelo fato dele não ser um mimado com aqueles outros que contavam vantagens em ano que nem ao menos existia. Pagou o menino com o que lhe restava. O menino ficou supresso e expressou um enorme sorriso.
- Brigado, tio!- saindo correndo mais afoito do que nunca.
Quando Murilo chega à entrada de sua casa. Olha de longe a miragem dupla. As grades do quintal eram como uma fronteira deserta de outro país que ele fora exilado. Uma imagem perdida nitidamente cravada, imagens confusas pelo efeito do álcool, metade do caminho havia bebido todos os bujãozinhos das encruzilhadas. Imagens de trens, partidas, campos verdes de uva, cheiro de liberdade. Escutando os sons das gaitas e acordeons das praças públicas das cidades italianas. Uma imagem de uma amada perdida na mente- olhando, fitando, mirando como flecha. Desejando aquele objeto amado como o alvo. Mas a mente é terra onde ninguém pisa e tudo o que ele mais desejava era fugir daquelas terras- flores encantada, escuras, cheias de gigantes arvoredos que assombram os pesadelos. Mas tudo o que ele mais queria era entrar em alguma terra do passado e nunca mais do lado de fora da amada ser esse estrangeiro. Já bastava ser estrangeiro dele mesmo, partindo, regressando, sendo outros.
Ali, dentro jurava ele próprio conhecer cada peça, cada cadeira, cada pedaço e espaço. Mas não, era apenas o pedaço perdido de ilusão. Hoje ele regressa estrangeiro, forasteiro do que nunca foi, do que vê e ouve. Velho de si próprio. Mas mesmo não sendo, não ouvindo mais, nem vendo as coisas como são, sim, com todo perdão poeta, ele reina no que nunca foi.
Então, como se paga um balão de gás ele entra na porta. Sem nada por dentro, sem dentro haver. Pega um LP antigo e encaixa na vitrola. E logo nos quadrantes do espaço ecoa: “Non... rien de rien...Non... je ne regrette rien. Ni le bien qu'on ma fait, ni le mal - tout ça m'est bien égal!” Pega uma garrafa de uísque e se entrega a ela como um amante virgem nas núpcias. Já não era mais virgem de nada, mas aquela garrafa o fazia de novo. Puro como cada destilado químico sem alquimia. Olhava as paredes cansadas do discurso vazio e tardio dos homens, e pensava, não, jamais quero um novo dia. Deu uma golada forte e entrou nos fios da mente: pessoas fazem planos sem saber se morrerá. O que resta de mim se não a morte? O que mantém chama são esses sonhos que pode ou não ser. Jamais aceitei nada de graça e é a pior coisa que alguém faz. Os olhos turvos de sono, mas ali estavam os pensamentos. Esse negócio de acaso é besteira. Deixar acontecer... Pega pelas mãos dessa estribeira do destino. O tempo é cruel, ele me destruiu. Não, jamais me esquecerei dos meus fracassos. Mas gostaria de ter acertos e pessoas do meu lado para dividi-los. Nada de amar o próximo sem amar a ti mesmo antes. Nunca senti pena de mim sou muito homem para isso!
Ele sentia a tonteira bem forte e sabia que a qualquer momento poderia dormir. Mas era isso que planejava não gostaria de ouvir nenhum barulho e expressão de felicidade. Pensava no povo pulando sete ondinhas, e imaginava que se tivesse no lugar deles pularia de cabeça. “Non... rien de rien...Non... je ne regrette rien. C'est payé, balayé, oublié, Je me fous du passé!”
Escutou a música e bebeu mais um gole da garrafa. Lembrou que uma desconhecida no bar uma vez comentou que a cantora Édith Piaf tinha uma vida conturbada e depressiva. Que inúmeras vezes teve que parar sua carreira por conta de doença e problemas pessoais. Quando um jovem compositor ofereceu essa canção, ela se animou e achou que deveria voltar a cantar- pois aquela musica expressava toda sua vida. De certo, Édith se entregou a interpretação com toda sua alma a essa música que tomou seu desempenho naquela noite no Olympia, de uma maneira, que marcaria a história da musica mundial. Então, Murilo só desejava achar um começo como a cantora depressiva achou. Mas onde?” Balayé les amours. Avec leurs trémolos. Balayés pour toujours. Je repars à zéro...”
Entretanto como ir? Se estava farto de acreditar em dias, nesses anos e nessas pessoas. Dizia a si mesmo que nunca poderia culpar ninguém, mas o fato das pessoas esperarem tanto por um ano era tanto vago. Se quem faz o novo são elas próprias. Mas onde tá esse novo? Fizemos tantas coisas, escrevemos tantas madrugadas a fio, pedimos aos céus, estrelas caíram no mar apagas. Dizia a si mesmo, o velho Murilo, pessoas quando chegam perto do final do ano, sempre começam a fazer promessas, listas do que fez ou o que não fez. Faxina para limpar mal olhado e blábláblá. Vou tentar limpar o peito- já amei bastante e sei que não serei correspondido. Pois aprendi que amor de fato não quer nada em troca e nem prende. Pelo contrário, o amor liberta. A única faxina que farei é de todos os sentimentos de arrependimento- quero conviver com tudo que fiz. Principalmente todos os meus erros.
Quando alguém bate a porta. Murilo dá um salto. Quem mais poderia ser agora? Levanta meio tonto, cai no chão e derrama algumas gotas de uísque no tapete. Aquela altura a casa cheirava a bebida forte e mofo, levantou, o velho cambaleou até a porta. Abriu e viu um menino. Mas será possível? Não. Só não me diga que o mesmo menino que limpou o sapato dele mais cedo, veio até ali? Era desse modo como às coisas lutavam na mente de Murilo. É claro que não é, seu velho, não vê que esse menino está limpinho e bem arrumado. Mas não é que ele é sua cara?
Então o jovem entrega um à fotografia e diz que tinha achado perto de seu portão. De longe, escutamos uma mulher berrar o nome do guri, ele e Murilo olham a mulher fazer sinal de “vamos logo”. O rapaz sorriu do mesmo modo de como terminou de engraxar e foi-se. O velho podia notar o menino dando a mão para a mãe e cochichando animados seguido de risos. O peito ficou pequeno e bem menor ainda foi quando viu a foto. É claro, meu leitor, é a mesma foto que ele picotou na rua!
Tudo aquilo já era demais. Ou ele estava muito bêbado, poderia ser sonho também. Resolveu que iria dormi. Os risos iam aumentando e os gritos iam ficando estridentes lá fora. Não, o velho Murilo não ia planejar nada. Nada de comer lentilhas! Esse velho não tem peito mais para decepções, em nada poderia esperar do amanhã. Gostaria de dizer coisas que ele mesmo não disse, mas dize-las talvez nunca seja do tamanhão da imensidão que é o sentimento. Essa maldita língua, essas regras da linguagem, nunca vai aproximar do que o Murilo queria ter dito. É dizer já é correr o risco de não dizer. Talvez o que Murilo deseje mais nessa virada é coragem para dizer mesmo não conseguindo. Mesmo que haja muitos erros de ortografia, mas que seja dito. Mesmo que as pessoas não diga em troca o que ele queira ouvir. Mesmo que o silêncio nos encubra com o tecido da noite. Mas que diga alguma coisa que dê vida, pois já não espaços para muita coisa e os dias virão por nós. Mas e agora que as pessoas não estão aqui, como ele poderia dizer? Mas algo berra, uma mão tece o fio e uma voz diz acalentando.
Desse jeito sem muito jeito, ele vai ao seu quarto e deita. Vira para o canto. E tenta apagar alguns resquícios de memória. Insiste em rolar de um lado a outro. Finalmente consegue pregar os olhos. No outro espaço maior, pessoas contavam sincronicamente os números estourando a felicidade, gastando as palavras e os risos. Fogos de artifícios cortavam o ar como mágica. E assim esse foi seu último dia de um novo ano velho. Desse mesmíssimo modo como faço minhas linhas vívidas às últimas palavras de um velho começo.